Alcoólicos e Narcóticos Anônimos e o Tratamento de Dependentes

Meus primeiros contatos com dependentes de álcool e drogas em tratamento ocorreram em 1975, quando ainda estudava medicina e iniciei meus estágios em hospitais psiquiátricos no Vale do Paraíba, mais tarde em ambulatórios e clínicas especializadas.

Naquela época já havia percebido que as características a doença dificultavam o seu diagnóstico e que o estigma que paira sobre os atingidos dificultava a sua aceitação pelos mesmos.

Não admitir que o álcool ou as drogas sejam as causas de alguns de seus problemas, negar a necessidade de tratamento, rejeitar a ajuda para parar de consumir e a pouca aderência (permanência) aos tratamentos tornam-se grandes obstáculos à recuperação dos dependentes e levam ao fracasso dos tratamentos na maior parte das vezes.

Em 1981 conheci os Alcoólicos Anônimos e, em 1985, os Narcóticos Anônimos. Logo me impressionei com a quantidade de dependentes de álcool e drogas que se recuperavam com ajuda daqueles grupos sem que precisassem tomar qualquer remédio e, muitas vezes, sem qualquer ajuda terapêutica.

Nessas décadas acompanhei muito de perto a recuperação de milhares de pacientes em variados tipos de tratamento, com ou sem internação, e uma grande parte deles com a ajuda de Alcoólicos e Narcóticos Anônimos. Frequentei centenas de reuniões em diversos grupos, descobri o quanto acrescentavam a cada participante e aprendi uma nova filosofia de vida, sentindo-me melhor como ser humano.

As reuniões têm um formato escolhido democraticamente pelo grupo, mas basicamente consistem em dar a palavra aos que a solicitam e têm alguns minutos para transmitir suas experiências, seu desabafo, sua confissão ou a revelação dos bons momentos que estão vivendo, que induz cada um a reorganizar o próprio pensamento e facilita para os outros participantes ouvintes a percepção do problema através de um mecanismo semelhante a um espelho onde eles se vêem através dos iguais, sem a interferência de nenhum bloqueio psicológico que os faça se defender.

Não há modelo específico para os depoimentos e cada um fala sobre o que prefere sem que haja qualquer contestação por parte do grupo. É o livre pensar.

Apesar da maioria procurar ajuda sob pressão de outras pessoas ou da própria vida, o grupo de Alcoólicos ou Narcóticos Anônimos não impõe nada ao bebedor ou usuário de drogas, nem mesmo exige que ele pare de beber ou usar drogas, somente lhe dá sugestões que o permitem superar mais facilmente as complicações da abstinência e o ajudam a desenvolver novas estratégias para se afastar das drogas. Para muitos, este apoio moral sem cobranças é fundamental para a sua recuperação.

Parar de beber ou consumir drogas não e fácil como pretendem os usuários porque impõe mudanças filosóficas e comportamentais na vida das pessoas e isto inclui tudo que os adictos mais gostam como bares, baladas, festas raves e os amigos “legais” que também bebem e consomem. Ele fica sem opções porque de início não lhe é dado nada em troca, as diversões e hábitos mais saudáveis ou convencionais são muito chatos para ele e, nos primeiros meses, a maioria deles ainda não sabe conversar, sociabilizar, namorar ou “sexar” sem consumir álcool ou drogas.

Nos AA e NA, muitos se apegam a conceitos altamente intelectualizados ou a aspectos filosóficos do grupo para garantirem a sua recuperação, outros o conseguem insistindo na frequência e alguns se apegam aos vários lemas e chavões que ornamentam as paredes do grupo e que repetem frequentemente: “Álcool também é droga”, “Evite pessoas, lugares e hábitos da ativa”, “Não se leve muito a sério”, “Viva e deixe viver”, “Primeiro as primeiras coisas”, “Vá com calma mas vá”, “Um dia de cada vez”, “Só por hoje”, “A dor é inevitável, o sofrimento opcional”, “Continue voltando”.

Uma oração repetida em todas as reuniões de AA e NA do mundo os ajuda a superar os momentos de dificuldade do dia-a-dia, não tem ligação com qualquer religião, tem uma súplica ambiciosa e sintetiza tudo que o ser humano precisa para ser vencedor, é a Oração da Serenidade: “Concedei-me Senhor, a Serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, Coragem para modificar aquela que posso e Sabedoria para distinguir uma das outras”.

A filosofia do programa foi descrita em “Doze Passos”, sobre os quais escreverei analisando os aspectos psicológicos implícitos em cada um.

É inestimável a ajuda que os grupos de AA e NA tem dado aos meus pacientes na sua recuperação, sempre se somam ao tratamento e facilitam o meu trabalho terapêutico já que frequentando as reuniões aprendem muito sobre as armadilhas da doença e confirmam, com os outros companheiros, a necessidade de mudar e encontrar outras formas de superar o problema.
Jorge Cesar Gomes de Figueiredo – Psiquiatra

Os Doze Passos de AA

1 – Admitimos que éramos impotentes perante o álcool e que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas

Primeiro Passo

AA – “Admitimos que éramos impotentes perante o álcool e que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas”

NA – “Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis.”

É difícil admitir que o uso drogas ou álcool lhe traz problemas e que já não pode decidir quando e nem quanto vai consumir. Pior que isto, que não tem como evitar as consequências do consumo.

Às vezes fico de frente com usuários problemáticos de drogas ou álcool cujo objetivo é somente convencer-me de que não estão doentes e que só estão ali por causa da família ou de alguns problemas que não têm nada a ver com droga ou bebida. Mesmo compreendendo os mecanismos psicológicos de defesa que os fazem assim agir e calcular o árduo trabalho necessário para romper suas resistências e conduzi-los a um tratamento, sempre imagino o quanto seria bom se já tivessem conseguido dar o “Primeiro Passo” e mudado a sua atitude desafiadora em relação à droga e ao álcool.

Esta atitude desafiadora do usuário e a sua teimosia o fazem continuar a consumir drogas. Ele é controlado por um conjunto de atitudes negativas e hostis incapaz de controlar suas emoções, de compreender as conseqüências desse descontrole e de aceitar as responsabilidades pessoais dessas consequências. Sentimentos como vergonha, culpa, ressentimentos, raiva, autopiedade, depressão, orgulho e grandiosidade o levam a beber ou consumir mais drogas e a perder cada vez mais o controle sobre suas emoções e sobre sua vida.

O primeiro passo de NA e AA equivale a admitir ou aceitar. Render-se e submeter-se são eventos psicológicos que impõem uma quebra de bloqueios e resistências de difícil alcance para o usuário que, frequentemente, faz apenas uma suspensão provisória da droga e dos comportamentos, ou seja, uma trégua. Harry Tiebout, o primeiro psiquiatra americano que se aprofundou nos estudos de AA, em um de seus artigos publicados em 1953, descrevia a trégua como um fenômeno consciente e inconsciente que é basicamente uma aceitação parcial ou rendição parcial que bloqueia a rendição verdadeira uma vez que, nesse caso, a cooperação é um tanto relutante e forçada. O indivíduo não está inteiramente feliz por concordar.

A trégua retrata sentimentos divididos e confusos, carregados de reservas íntimas que tornam frágil e diluída a disposição de acompanhar as idéias do grupo, especialmente no que diz respeito a evitar o primeiro “teco” ou primeiro gole. Enquanto a dor aguda e sofrida consequente das últimas “baladas” permanece em sua memória, ele concorda com tudo e com todos, o seu inconsciente contemporiza, a realidade do seu problema com a droga é inegável e ele não argumenta com fatos controversos. Assim que a lembrança do sofrimento enfraquece acaba a trégua, a sua parte que nunca foi aceita retoma o curso e ele usa droga novamente. Tudo isto ocorre sem que sequer ele perceba, é como se estivesse no escuro, o que ele recebe são mensagens vindas de baixo e que, lenta ou rapidamente, trazem uma mudança nas suas atitudes conscientes.

A não aceitação não é uma recusa voluntária, ela ocorre devido a fatores inconscientes de força de vontade e resistência desenvolvida pelos mecanismos psicológicos de defesa. É melhor compreendida quando, como sugeriu o estudioso Donald Lazo, vemos o uso de drogas e bebidas como uma doença que altera o juízo de suas vítimas de tal forma que se tornam incapazes de se reconhecerem doentes, chegando a querer, a todo transe, tornarem-se mais doentes.

O que torna mais difícil o evento do primeiro passo é admitir a sua segunda parte, “que perdemos o controle sobre nossas vidas”. Mas perceber a sua decadência ou a própria falência como ser humano e ter a sensação de que chegou ao fundo de um poço permite-o deixar as exigências de lado, reconhecer a perda da auto-suficiência e aceitar a ajuda de outras pessoas. Assim, para o adicto, permanecer nas reuniões de NA ou AA é como aceitar uma bóia salva-vidas quando estiver se afogando, sem mais se importar com a cor da bóia. Posteriormente, ele percebe que a perda de domínio se deu muito tempo antes de tê-la admitido.

A rendição é semelhante a um processo de conversão e o usuário passa a ser controlado por um conjunto de atitudes positivas e afirmativas, volta a ter reações mais construtivas. Esse processo é necessário para permiti-lo submeter-se ao tratamento e para a prática dos outros passos da filosofia de NA e de AA.